quinta-feira, 15 de março de 2012

Máquina de vender

Um mergulho na Casas Bahia, gigante do varejo de eletrodomésticos e móveis, apontada por pesquisadores da Michigan Business School como benchmark mundial no mercado da baixa renda.

A baixa renda tornou-se um alvo prioritário no mundo corporativo. Grandes corporações, a exemplo da gigante anglo-holandesa Unilever, já fizeram sua opção preferencial pelos pobres. Há cada vez mais empresas de olho no potencial dessa faixa de consumidores que no Brasil movimentou 372 bilhões de reais no ano passado. Mas não se trata de uma tarefa fácil. Não é para quem quer. Vender para as classes C, D e E é para quem sabe. No país, há meio século a universidade para aprender a fazer negócios com a baixa renda chama-se Casas Bahia. Trata-se de um caso sem similar também no varejo mundial, como descobriu a equipe do indiano C.K. Prahalad, professor na universidade americana de Michigan e um dos mais respeitados especialistas em temas de estratégia. Prahalad elegeu a rede como um dos 12 casos que ilustrarão seu próximo livro, dedicado ao mercado popular, e despachou para São Paulo dois pesquisadores de Michigan para estudá-lo. A Casas Bahia tornou-se o fenômeno no varejo nacional. Guardadas as devidíssimas proporções, a rede está para o Brasil como a Wal-Mart para os Estados Unidos.

Seu faturamento de mais de 12 bilhões de reais no ano passado é mais que o dobro do rival mais próximo, o Ponto Frio, e equivale à soma dos cinco maiores. O poder conferido à Casas Bahia pela escala de compras é sem precedentes. Em pouco mais de uma década, suas 100 filiais multiplicaram-se para as atuais 500. Suas vendas de móveis decuplicaram, as de refrigeradores e freezers multiplicaram-se por sete, e as de aparelhos de televisão triplicaram, ultrapassando 1 milhão de unidades no ano passado. "Aqui, agora se vende ao ritmo de 2 000 reais por segundo", afirma Michael Klein, primogênito do fundador da rede, Samuel Klein. Hoje, se a Casas Bahia der um espirro, a indústria brasileira de eletroeletrônicos pega uma baita gripe. 

Qual o segredo da Casas Bahia?

A habilidade para entender as necessidades emocionais e os hábitos de compra dos clientes da baixa renda e a capacidade de viabilizar seu sonho de consumo por meio do acesso ao crédito resultaram num modelo de negócios único no que diz respeito ao varejo. Foi o que concluiu o pesquisador de Michigan Sami Foguel, que, orientado por Prahalad, veio a São Paulo acompanhado do colega de MBA Andrew Wilson. "A Casas Bahia prova minha tese a respeito da importância e da rentável oportunidade de mercado existente na base da pirâmide de renda", disse Prahalad, que batizou seu novo livro de The Fortune at the Botton of the Pyramid ("A fortuna na base da pirâmide").

Por se manter fiel ao seu modelo de vendas pelo crediário, forjado na cultura do ex-mascate Samuel, a Casas Bahia pôde se dar ao luxo de ignorar modismos e tendências dos negócios. Seus carnês devem ser pagos somente nas lojas. Numa era em que a terceirização da produção já chegou até mesmo aos grandes fabricantes, a Casas Bahia possui três fábricas somente para produzir os móveis que comercializa. Samuel já foi criticado por manter uma frota própria de entregas, coisa da época pré-reengenharia. Inabalável, comprou mais caminhões pesados no ano passado, alcançando uma frota de 2500 veículos. Em um gigantesco centro de distribuição que ergueu em Jundiaí, a Casas Bahia mantém estoques para dois meses, no mínimo, mais do que o dobro do perseguido pelas outras redes de varejo. 

Enquanto a Casas Bahia crescia nos anos 90, alguns concorrentes tradicionais, como Mesbla, Mappin e a rede G.Aronson, sumiam do mapa. Outros, concordatários, ressurgiram enfraquecidos, caso da Arapuã. É verdade que nesse tempo avançaram redes como o Magazine Luiza, com sede em Franca, no interior paulista, além de hipermercados como o Extra e o Carrefour. Nenhum deles, porém, com musculatura suficiente para fazer sombra à rede da família Klein.

Devoção à simplicidade

Choques entre sócios, executivos engalfinhados em brigas pelo poder, nenhuma das mazelas que costumam tumultuar a vida das empresas, levando-as à inevitável perda de foco, é vista na Casas Bahia. A empresa é governada monoliticamente: em torno do patriarca Samuel e dos filhos Michael e Saul há um pequeno grupo de executivos, pratas da casa, com mais de 20 anos no grupo. "Os custos corporativos são mínimos e não sobrecarregam os departamentos", afirma o consultor Ricardo Jacob, ex-executivo dos rivais Extra e Arapuã.

As questões que realmente importam são debatidas na sala de almoço da diretoria, no 5o andar da sede, em São Caetano do Sul. É preciso reduzir os juros ou dilatar as prestações? Eis o fórum. Num almoço recente, Samuel apresentou a idéia de um cliente: por que a Casas Bahia não vende também material escolar? Aparentemente estapafúrdia para uma rede que a vida toda trabalhou com móveis e eletrodomésticos, a sugestão nem por isso foi descartada. Ao contrário, foi examinada nos detalhes: quanto espaço ocuparia da loja? Seriam vendidos apenas os itens básicos? Embalados em kits, como fazem os supermercados? Um dos diretores ficou encarregado de testar a viabilidade da proposta.

Foi também num desses almoços que Samuel, tempos atrás, expôs seu plano de perdoar a dívida de quase 1 milhão de clientes que estavam com a ficha suja no SPC. A anistia estava condicionada a que comparecessem a uma loja da Casas Bahia para esclarecer a razão do calote. Com isso, cerca de 10% dos inadimplentes, os que puderam apresentar explicações convincentes, voltaram imediatamente às compras. Do episódio resultou também uma lição. Os analistas da rede constataram que quase a metade dos devedores havia emprestado o nome para um terceiro fazer as compras. Desde então, o financiamento passou a ser liberado apenas se o endereço do cadastro e o da entrega do produto for o mesmo.

A cultura devotada à simplicidade espalha-se pelas lojas. Com 56 mil colaboradores, incluídos os terceirizados e os temporários, a Casas Bahia opera com apenas três níveis hierárquicos, do vendedor à diretoria. Há uma equipe auditando todo o tempo os caixas, os estoques e o layout das lojas. Se uma loja fatura abaixo da previsão, a equipe formula um diagnóstico para atacar o problema. Por enquanto, os preços estão padronizados, assim como o layout das lojas. Isso facilita a operação, mas por vezes pode limitar oportunidades. Um programa interno recentemente desenvolvido permitirá a prática do chamado micromarketing, com mix de produtos adequados a cada região. 

Com suporte tecnológico sofisticado, executado por uma equipe própria de 80 técnicos (mais uma vez, na contramão da tendência geral de terceirização da TI), a informação corre em tempo real. É possível conferir, pela intranet, toda a movimentação da rede. As 500 lojas estão ligadas eletronicamente. Os Klein podem monitorar as vendas por grupos de produtos ou de lojas. Da tela de seu monitor, Michael tem condições de saber, a qualquer momento, quantos novos carnês foram abertos e em que prazo. Seu irmão Saul, responsável pela operação das lojas, pode avaliar se os estoques do centro de distribuição estão de acordo com as vendas e qual volume de encomendas projetará para o próximo mês.

A rede Bahia é movida pela massificação dos volumes. "O valor médio do tíquete de compra, de 400 reais, não cresce desde o início do Plano Real", diz Michael. "A lógica, então, é aumentarmos a base, abrir lojas em novas cidades." Para selecioná-las, a diretoria vale-se de informações do Serviço de Proteção ao Crédito. O helicóptero Agusta, de 4,3 milhões de dólares, que serve à diretoria, não é um luxo. A bordo dele, Michael sobrevoa a periferia paulistana em busca de novos pontos, de preferência em áreas de alta densidade populacional.

Foco, foco e foco

De cada 100 clientes da Casas Bahia, cerca de 70 não têm como comprovar renda. São vendedores ambulantes, empregadas domésticas e pedreiros com ganhos equivalentes a dois salários mínimos mensais. Vivem em casas com até sete pessoas, em média, situadas em bairros densamente povoados -- 37 000 habitantes por quilômetro quadrado. De acordo com uma análise da consultoria Booz Allen, a Casas Bahia penetra hoje em 40% dos lares de baixa renda. Um dos principais diferenciais da rede é a capacidade de explorar no limite o conceito de "acessibilidade". Ao oferecer opções de pagamento que chegam a se estender por 18 meses, o cliente ganha acesso a bens que, sem o carnê, ficariam no sonho. Como bem compreendeu a Casas Bahia, o sonho da baixa renda, ao contrário do que se possa imaginar, é consumir as mesmas marcas reverenciadas pela classe média -- segundo o relatório dos pesquisadores da Michigan Business School. Para que a inadimplência seja mantida em nível suportável, os vendedores da Casas Bahia são treinados para "ensinar" o cliente a comprar de acordo com sua renda mensal. "Vestir o produto no cliente" é a expressão em voga entre os vendedores da rede. Se o cidadão deseja um aparelho de TV de 27 polegadas, mas seu orçamento não cabe nas prestações, o vendedor o convida a sentar-se (nenhuma negociação é feita de pé) e lhe oferece um modelo de 20 polegadas. "O processo de educação do cliente é um fator-chave para a rede", afirma o estudo da Michigan.

Verticalização do varejo

É com a venda de móveis que a Casas Bahia colhe os melhores resultados. Nesse departamento é que ficam evidentes as sinergias vantajosas obtidas pela empresa. Para começar, a margem bruta é 40%, quase o dobro da obtida com os eletrodomésticos. Tão ou mais importante é saber que a média de inadimplência nas vendas de dormitórios, mesas e estofados cai para 4%, a metade em relação aos eletrodomésticos. No setor de varejo como um todo, 6,5% dos clientes deixam de pagar a prestação. Mas essa média sobe para 16% quando se avalia a taxa de inadimplência dos concorrentes no mercado popular, o dobro da Casas Bahia. "É mais fácil aprovarmos um crédito para a compra de uma cama do que para uma TV", diz Michael. Por quê? "Móveis são bens de primeira necessidade e de difícil revenda." Quando há atraso no pagamento, quase sempre o cliente procura renegociar a dívida, em vez de simplesmente devolver a mercadoria. Assim, engrossar a participação de móveis no faturamento global tornou-se crucial para que a Casas Bahia consiga reduzir a taxa de inadimplência.

Já há um plano em marcha para fazer com que os móveis, que representam 25% das vendas, passem a responder por 40%. Uma iniciativa nessa direção foi a inauguração da terceira unidade da Indústria de Móveis Bartira, o braço industrial da Casas Bahia, erguida ao custo de 25 milhões de reais. A Bartira -- que nomeia as linhas de armários de cozinha, dormitórios e estantes -- produziu um terço dos cerca de 13 milhões de móveis comercializados pela Bahia no ano passado. "Somos o maior consumidor individual de placas de madeira aglomerada do país", diz Joseph Gelschyn, diretor da Bartira, que começou a trabalhar com Samuel aos 16 anos de idade. Quando a Bartira foi adquirida, em 1981, Samuel o convocou para assumir a direção. A força do negócio passou a ser a produção de peças avulsas. Como a maioria dos clientes não tinha dinheiro para comprar o dormitório completo, a Casas Bahia passou a vender separadamente a cama ou o armário. Com o tempo, o contato direto com a freguesia gerou produtos sob medida para moradores que vivem em minúsculos apartamentos de conjuntos habitacionais.

Empiricamente, os executivos da rede e da fábrica de móveis há muito aplicam na prática uma tendência que só agora desponta nos negócios. Chamada de integração vertical reversa, a prática consiste em produzir em casa as mercadorias com base no conhecimento das necessidades do consumidor. "Estamos assistindo à volta da verticalização através do varejo", afirma o consultor paulista Marcos Gouvêa de Souza. "Empresas como Casas Bahia e C&A conseguem administrar velozmente todo o ciclo que vai da produção, em sintonia com a escala de demanda, à venda na loja."

As equipes das fábricas e das lojas trabalham como siamesas: nada é lançado sem que antes seja planejada uma ação em conjunto. Semanas atrás, Allan Barros, diretor da área de móveis da rede, encomendou a Gelschyn, da Bartira, um lote de guarda-roupas de um modelo chamado Agreste. Àquela altura, Barros já havia esboçado uma campanha de vendas com o publicitário Sílvio Matos, presidente da Young & Rubicam, a agência da Casas Bahia. O lote desapareceu num fim de semana, assim que a campanha passou a ser veiculada na TV. É Barros, presente no set de filmagem, quem passa as orientações para as campanhas. Detalhes em relação ao preço da mensalidade ou à ênfase em um ou outro produto fazem a diferença entre vender muito e vender pouco. "Trabalhamos com pistas de preço", diz Barros. "A prestação de um conjunto estofado popular não deve passar de 39 reais." Acompanhado de Matos, ele visita a cada semana as lojas, conversa com vendedores e clientes. O mote "Quer pagar quanto?" foi ouvido de um vendedor numa dessas ocasiões e acabou inspirando o bordão maciçamente veiculado na TV. 

A cada ano são produzidos de 200 a 300 comerciais, além de spots de rádio e veiculação em jornais. Toda essa mobilização custa uma fortuna, certo? Os institutos especializados em avaliar os investimentos em mídia atribuem à Casas Bahia uma verba até cinco vezes superior aos cerca de 143 milhões de reais declarados pela empresa no ano passado. Seria assim caso fosse praticado o preço de tabela e não entrasse em ação o fator Klein. A mesma lógica que orienta a compra de móveis e eletrodomésticos -- "comprar bem comprado", como diz, e traduzindo: grandes volumes pelo menor preço possível -- vale também para os investimentos publicitários.

"Vender bem vendido"

Estima-se que as cinco maiores redes varejistas tenham comercializado 45% dos 7,2 milhões de unidades da linha branca e 15 milhões de unidades das linhas de áudio e vídeo no ano passado. A fatia da Bahia é calculada pelos fornecedores entre 18% e 20% do total. No ano passado, de cada 100 celulares, aparelhos de TV e de DVD, 20 saíram de uma loja da rede número 1, a Casas Bahia. Essa proporção é mais elevada em relação a máquinas de lavar (36%) e geladeiras (25%). É possível que esses percentuais oscilem um pouco, uma vez que são calculados com base nas estatísticas de vendas dos maiores fabricantes. "Só de itens de linha branca, compramos de 19 fornecedores", diz Michael.

"Com o estreitamento do mercado, os fornecedores ficaram dependentes da Casas Bahia, Ponto Frio, Magazine Luiza e Lojas Cem", diz o consultor Gouvêa de Souza. "A Bahia tem uma posição de caixa privilegiada e acaba negociando ou à vista ou antecipado, o que é vital para os fornecedores." Sua folgada liderança possibilita cumprir à risca um dos mandamentos do fundador: "Comprar bem comprado, vender bem vendido". Isso só se obtém com escala. "Chegamos a adquirir 120 000 aparelhos de TV por mês", diz Samuel. "Se o fornecedor não der uma colher de chá para nós, compraremos de quem der melhores preços e condições." Não fechar um acordo com a Bahia pode ser arriscado. "Em 2002, a Mitsubishi ficou de fora de nossas lojas de junho a dezembro", diz o diretor Barros. "Em seis meses, a marca caiu da terceira para a 15a posição em vendas de televisores no Brasil." Ainda segundo Barros, a Casas Bahia não repassa para a sua margem o que obtém com suas barganhas. "A Bahia não é de queimar preços", diz Eduardo Moreno, diretor comercial da Semp Toshiba. Uma das frases lapidares de Samuel foi dita a um amigo, o empresário Girsz Aronson, bem antes que sua rede, G.Aronson, fosse à lona: "Se você é o inimigo número 1 dos preços altos, você é seu próprio inimigo".

Essas vantagens obtidas nas negociações são transferidas para os financiamentos e para arcar com os custos de serviços aos clientes. A rede emprega, por exemplo, 4 000 funcionários encarregados de instalar os móveis na casa dos clientes. "Em vez de focar economias a fim de minimizar o capital, a Bahia prefere negociar com seus fornecedores volumes elevados a preços baixos", afirma o relatório da Michigan Business School. Em relação à Bahia, os fornecedores demonstram uma atitude ambígua. Há, de um lado, uma visível preocupação com a excessiva dependência à rede. "Já se nota um movimento de desconforto entre os fornecedores", afirma Juraci Parente, professor do centro de excelência do varejo da Fundação Getulio Vargas. Há pelo menos um fornecedor que não concede descontos nos níveis pretendidos pela Casas Bahia: a Philips. "A corporação tem uma política mundial contrária à concentração de vendas", diz Michael.

Por outro lado, a Casas Bahia é vista pelos fabricantes como uma formidável máquina de vendas, que evita os riscos de inadimplência dos pequenos e médios varejistas. Uma das diretrizes da Casas Bahia é não reconhecer pressões individuais por reajustes de preço. A rede simplesmente interrompe as encomendas e transfere os pedidos correspondentes aos concorrentes.

Homens e máquinas

A máquina de financiamento próprio faz a Casas Bahia assemelhar-se a um banco. São quase 14 milhões de clientes cadastrados, dos quais 7,2 milhões são ativos. Se fosse mesmo um banco, a Casas Bahia só perderia em clientela para o Itaú, o Bradesco e o Banco do Brasil. Cerca de 85% das vendas são financiadas. No entanto, criar um banco próprio nem sequer passa pela cabeça dos Klein. "Meu negócio é vender: se eu passar a oferecer crédito, seguros, poupança e investimentos, meus clientes vão mandar para o banco alguns reais que deveriam estar gastando conosco", diz Michael.

Outra chave para entender a veloz expansão da rede, de acordo com o trabalho dos pesquisadores da Michigan, diz respeito aos investimentos em tecnologia. Antes da chegada dos computadores, eram necessários 30 analistas de crédito por loja. Cada cliente era tratado como se aquela fosse sua primeira compra. Inexistia histórico de crédito. Com o processo automatizado desde meados da década passada, o tempo de espera dos clientes em compras de até 600 reais, que não exigem comprovação de renda, foi reduzido de 30 minutos para 1. A tecnologia também ajudou a reduzir as fraudes, proporcionando à rede uma economia de 400 milhões de reais a cada ano. Note: os programas são desenvolvidos em casa. Com isso, a Casas Bahia investe 0,8% do faturamento em tecnologia, ante 3%, a média nacional.

Uma novidade, introduzida em 1995, foi o sistema automático de carnês, que, impressos, passaram a ser enviados à casa dos fregueses. Tudo parecia perfeito e a rede economizaria 4 milhões de reais. Para surpresa geral, depois de todas essas providências, a inadimplência havia disparado. Ao se apurar as razões do fiasco, descobriu-se que a causa era um detalhe prosaico mas altamente relevante: como o novo carnê não cabia no bolso, ia parar numa gaveta, e o cliente esquecia a data do vencimento. O sistema foi refeito de modo a reduzir o tamanho do talão. Além disso, o cliente foi convidado a retirar o carnê na loja, assegurando e certificando o recebimento do documento em mãos.

Feita para durar?

Até que ponto o modelo da Casas Bahia, que até agora vem se mostrando implacável com os concorrentes, poderá se sustentar no futuro? Algumas ameaças vêm de mudanças de hábitos da baixa renda, o público preferencial da rede. Há cada vez mais consumidores dessa faixa portando cartões de crédito. Se os clientes optarem por eles nas compras, em vez dos carnês, as visitas às lojas devem diminuir, e com isso abalar o sistema. Por enquanto, a maior parte do crescimento das transações eletrônicas -- de 4% para 12% -- deve-se a clientes da classe média, que começaram a afluir às suas lojas.

A Casas Bahia quer, sim, atraí-los mais e mais. Algumas lojas em bairros nobres serão preparadas para receber essa clientela abonada. Isso exigirá investimentos, aluguéis ou imóveis caros, o que contradiz com o paradigma de um operador de baixo custo. Um teste nessa direção foi a megaloja aberta em no Anhembi, em São Paulo, com a presença de artigos mais sofisticados, como TVs de plasma, equipamentos de home theater e refrigeradores de inox. Quase a metade das compras foi paga com cartão. Clientes do topo da pirâmide também costumam ser mais exigentes. Compram mais equipamentos eletroeletrônicos do que móveis, a área mais lucrativa da rede. A questão é: ao atacar todo o espectro das classes de consumo, será possível para a Casas Bahia manter o foco, fator crítico para seu sucesso até agora?

O próprio crescimento da rede, ao ritmo de 30 novas lojas anuais, coloca o desafio de monitorar centenas de caminhões, milhões de entregas e segurar a inadimplência de um gigantesco banco de clientes. Os Klein consideram que agora poderão tirar vantagem competitiva da escala. Acreditam que vai ficar mais barato crescer. E quanto ao fator humano? Ao longo dos anos, a política de recursos humanos da Casas Bahia foi moldada em bases paternalistas. Os benefícios são comuns, dos faxineiros aos diretores: 14o salário, cesta de alimentos mensal, premiações por metas em lojas e alguns trocados em vésperas de feriados.

Há, finalmente, a questão da rentabilidade. Na revista Melhores e Maiores a Casas Bahia se destaca na terceira posição entre os melhores do varejo graças à pontuação obtida com sua liderança de mercado e a riqueza gerada por empregado, bem acima da média. O lucro líquido nominal atingiu 18 milhões de dólares. Ajustado à inflação do período, converte-se em prejuízo de 132 milhões de dólares. Além disso, a empresa apresentou um endividamento de 470 milhões de reais. "A Casas Bahia é a empresa com o maior capital circulante líquido", afirma o professor Ariovaldo dos Santos, da Fipecafi, da Universidade de São Paulo, responsável técnico de Melhores e Maiores. "Porém seus resultados estão muito expostos aos efeitos da inflação." Por se tratar de uma empresa de capital fechado, é difícil saber nos detalhes como os Klein manejam suas finanças. O fato é que a Casas Bahia opera num dos setores que, em passado recente, demonstraram grande vulnerabilidade às ciclotimias da economia. Também vitimada pela boataria, alguns bancos exigiram da Casas Bahia a antecipação do pagamento de dívidas de longo prazo. Na década passada, uma operação de securitização de debêntures coordenada pelo Unibanco serviu para ajustar o fluxo de caixa. "A exemplo do que fazemos com outros clientes do varejo, acompanhamos os movimentos da Casas Bahia e periodicamente avaliamos sua capacidade de receber o que vendeu", diz Fernando Sotelino, presidente da área de atacado do Unibanco e credor da Casas Bahia. "Neste segmento, o lado financeiro gera um fator de risco."

A exemplo da maior parte dos grandes grupos familiares brasileiros, perpetuar o negócio é uma preocupação dos Klein. No entanto, mais uma vez na contramão, eles descartam o receituário seguido por grupos como Suzano e Odebrecht, entre outros, que profissionalizaram a gestão e separaram o patrimônio da família do da empresa. "Tudo o que a família possui, por filosofia, é investido na empresa", diz Michael. Na Casas Bahia o processo sucessório seguirá a tradição judaica: Michael, por ser o mais velho dos irmãos, é quem sucederá ao pai, garantindo o controle familiar -- no que depender dos Klein, dificilmente a Casas Bahia abrirá seu capital. "Quem tem sócio tem patrão", diz Samuel.

Fonte: Exame 

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